pessoinhas do ônibus H4 - zona universitária


O meu favorito é o menininho autista de óculos azuis. Pra mim ele é o menino azul porque ele tá sempre de uniforme azul e casaquinho azul e os óculos com a armação toda azul, aquelas armações de óculos de criança que dão a volta na cabeça e parecem ser feitas de borrachinha bem macia.

Quem leva ele pra escola é a mãe, uma loira espanhola de meia idade, bem vestida, sempre bem-humorada. Bem vestidos são quase todos os pais que vejo nessa linha, porque cruzamos um bairro bem riquinho de Barcelona, mas ela é consideravelmente melhor humorada que o progenitor médio levando sua cria pra escola de ônibus às 8 da manhã. Nunca vi essa mulher de ovo virado. O menininho tem a fala limitada em certo nível, mas ele fala uma palavra e ela escuta uma frase. Conversas inteiras assim: uma ou duas palavras dele são o suficiente pra elicitar uma resposta completa dela. E ela fala com ele como que de gente pra gente e não de gente pra criança. No mesmo tom que fala com qualquer adulto ali.

Uma vez a gente tava num veículo em particular que eu já peguei algumas vezes nessa linha que tem uma falha técnica: o letreiro luminoso em cima da porta, que indica se alguém já apertou pra sair na próxima parada ou não, não funciona. Simplesmente não acende. O menininho notou isso uma vez. Ele apontou pro letreiro e falou assim, “Jorge”. Ninguém entendeu muito bem. Ele repetiu o nome algumas vezes; não ficando frustrado, e sim no mesmo tom, conclusivo. Até que a mãe entendeu e aí explicou. Jorge é o nome de um amigo da família que é motorista de ônibus. Na visão dela, o que o menino queria dizer era: que ele queria falar com o Jorge pra ele explicar por que o letreiro não está funcionando.

Nesse mesmo dia ele tava em pé no corredor ao meu lado porque quando entrou o ônibus já estava lotado, e aí eu comecei a guardar meu livro e ofereci meu lugar, mas a mãe logo gesticulou pra eu ficar e falou assim: “muito obrigada mesmo, mas ele gosta de sentar só na última fileira”. Eu estava na penúltima do ônibus; atrás de mim, a última estava ocupada por um adolescente. E aí ficamos eu e o menininho esperando o adolescente sair. Eu sabia que ia acontecer: as escolas de ensino médio vêm antes de onde o menininho ia descer. Na hora que chegou a parada do adolescente ele teve que pedir licença pra conseguir sair porque o menininho já estava em pé no degrau esperando pra sentar. Enfim, sentado na cadeira que ele gosta, ele abriu um sorrisão e soltou uma rara frase completa: “daqui eu consigo ver todo mundo.”