a morte é um dia que vale a pena viver


Minha terapeuta me recomendou esse livro excelente, "A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver", da Ana Cláudia Quintana Arantes. Eu fui lendo aos pouquinhos ao longo de mais de um mês porque tava enrolada com a faculdade, e também senti que o livro toca em vários temas alternadamente em uma ordem meio confusa, mas foi uma leitura importantíssima pra mim, então quando terminei, decidi revisar tudo e fazer minhas próprias anotações. São principalmente trechos do livro que eu tinha marcado no meu Kindle, e transcrevi tudo sem copy-paste, pra me forçar a pensar mesmo e grudar na mente pra não esquecer; eu os separei em tópicos da maneira que fez mais sentido pra mim e acrescentei observações relacionadas também.


Sobre ter medo da morte

A escolha de se manter sentada nos protege de andar e de perder as pernas no caminho?
Quem diz ter medo da morte deveria ter um medo mais responsável. Quem sabe poderíamos dizer que deveriam ter respeito pela morte. O medo não salva ninguém da morte, a coragem também não. Mas o respeito pela morte traz equilíbrio e harmonia nas escolhas. Não traz imortalidade física, mas possibilita a experiência consciente de uma vida que vale a pena ser vivida, mesmo que tenha sofrimentos aliviados, tristezas superadas por alegrias, tempo de beber para celebrar, de fumar para refletir, de trabalhar para realizar-se.
A única coisa da existência humana que não tem opção é a morte. Para todo o resto há opção: podemos fazer ou não, podemos querer ou não. Mas morrer ou não, isso não existe. O que faz a diferença dos caminhos que escolhemos ao longo da vida é a paz que sentiremos ou não nesse encontro. Se fizermos escolhas de sofrimento ao longo da vida, a paz não estará presente no encontro com a morte.
"A coisa mais assombrosa do mundo é que ao redor de nós as pessoas podem estar morrendo e não percebemos que isso pode acontecer conosco." (Mahabharata)
Não importa quantos anos viveremos, quantos diplomas teremos, qual o tamanho da família que formaremos. Com ou sem amor, com ou sem filhos, com ou sem dinheiro, o fim de tudo, a morte, chegará. E por que não nos preparamos? Por que não conversamos abertamente sobre essa única certeza? O medo, os preconceitos, a fragilidade que essa conversa expõe são maiores do que a nossa vontade de libertação desses temores. Há tempos na nossa vida onde as palavras não chegam. Tempos onde entramos em contato com o que há de mais profundo em nós mesmos, buscando respostas, sentidos, verdade. O tempo de morrer é um desses momentos.
O mais inquietante é que todos nós passaremos por ela ou acompanharemos a morte de quem amamos.
Quando vem a percepção de que estamos abandonando o nosso tempo, matando-o, aí a escolha é muito mais urgente; a mudança tem que vir agora mesmo.
Esse "não saber" do tempo nos traz a possbilidade de vivenciar o momento presente. Ele nos traz a oportunidade de experimentar a plenitude. Quando dizemos que nos sentimos plenos é porque estamos com o pensamento, o sentimento, a atitude e o corpo, todos os juntos, no mesmo lugar, ao mesmo tempo. (...) A morte, do outro ou nossa, será uma rara, ou até única, experiência de estarmos verdadeiramente presentes na nossa vida.


Sobre morrer a cada dia existindo sem viver

Morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos. Mas morremos mais depressa a cada dia que vivemos privados dessa consciência.
Quem está no metrô nunca está lá; apenas sai de um lugar para chegar a outro. Naquele monte de gente não tem ninguém presente. QUando estamos no metrô pensamos: "Quanto tempo falta pra chegar à minha estação?" Para muitas pessoas, a vida é como estar no metrô com os olhos vendados: elas entraram em um lugar que não sabem direito onde fica, não sabem onde vão descer e não estão presentes! Simplesmente estão dentro. Então a porta se abre e alguém pode chamar: "Ana Cláudia, vamos descer!" Já?
O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade estão torcendo para que o tempo passe mais rápido e sua morte se aproxime mais rápido. Mas o tempo passa no tempo dele, indiferente à torcida para apressar ou retardar sua velocidade. O que separa o nascimento da morte é o tempo. Vida é o que fazemos dentro desse tempo; é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido.


Zumbis existenciais: gente viva que vive de um jeito morto

Enquanto as pessoas não olharem para a morte com a honestidade de perguntar a ela o que há de mais importante sobre a vida, ninguém terá a chance de saber a resposta. O problema é que caminhamos ao lado de pessoas que pensam que são eternas. Por causa dessa ilusão, vivem suas vidas de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o verdadeiro, distanciados da própria essência. (...) Pensam que, se não olharem para o lixo de relação afetiva, o lixo de trabalho, o lixo de vida que preservam a qualquer preço, será como se o lixo não existisse. Mas o lixo se faz presente. Cheira mal, traz desconforto, traz doenças.
Eu os chamo de zumbis existenciais. Nas redes sociais, ao insistir em compartilhar violência e preconceito, ao persistir na vaidade de manter-se infeliz por dentro e bobamente feliz por fora, as pessoas cultivam cada vez mais a própria morte sem se dar conta disso.
Estão ausentes da própria vida, e isso talvez seja a maior causa de arrependimento experimentado no fim da vida. Faltar na própria vida é uma dessas ausências impossíveis de explicar. A conexão consigo mesmo, com o outro, com a natureza, com o mundo à sua volta e com o que cada um de nós considera sagrado exige, acima de tudo, um estado de presença. Não há espaço para falar sobre morte com pessoas que não estão vivas em suas vidas.
Pensar na morte faz com que pensemos que é preciso fazer alguma coisa. Outro grave engano: vamos nos distanciando do "ser" pelo caminho do "fazer". Pensamos então que uma vida boa é uma vida que nos levou a ter coisas e a fazer coisas. Mas quando chega o tempo da doença não pdoemos mais fazer nada. E quando deixamos de fazer, pensamos que isso é morrer, mas não é ainda. A ideia de "ser" humano é simplesmente existir e fazer diferença no lugar onde estamos, por ser quem somos. As pessoas que se ausentaram da própria vida serão apenas "ausências" no tempo de morrer.
Na terminalidade humana, é comum que todos ao redor da pessoa que morre a observem como se ela já estivesse morta. Mas o problema maior do mundo à nossa volta passa longe da doença física. Muita gente não está viva de fato, mesmo com o corpo funcionando bem. É uma coisa terrível. Pessoas que enterraram suas dimensões emocional, familiar, social e espiritual. Gente que não sabe se relacionar, que tem dificuldade de viver bem, sem culpas nem medos. Gente que prefere não acreditar para não correr o risco de se decepcionar, seja em relação ao outro, seja em relação a Deus. Gente que não confia, não entrega, não permite, não perdoa, não abençoa. Gente viva que vive de um jeito morto.
Em um contexto onde as pessoas não têm a chance de perceber que estão vivas, o cheiro característico da morte está mais presente. Mas onde a morte está, de verdade, a vida se manifesta.

↳ (Talvez haja mais morte em um metrô lotado de gente cansada voltando do trabalho e já cansada pensando em ter que trabalhar de novo no dia seguinte, do que numa ala de Cuidados Paliativos.)


Sobre o sofrimento único de cada pessoa

Sendo a doença uma interpretação de um conjunto de sinais e sintomas associados a exames de laboratório ou de imagem, entendo que ela pode se repetir. Existem milhares de pessoas com câncer. O sofrimento, porém, é algo absoluto, único. Totalmente individual. Podemos ver as doenças se repetirem no nosso dia a dia como profissionais de saúde, mas o sofrimento nunca se repete. Mesmo que o tratamento possa oferecer alívio para a dor, a experiência da dor passa p mecanismos próprios de expressão, percepção e comportamento. Cada dor é única. Cada ser humano é único.
Chega o momento da verdade, de encarar com honestidade o caminho percorrido. Nessa hora, alguém pode prescrever um antidepressivo. Sabemos que não se pode ficar quietinho e pensativo na sociedade de hoje. Seremos rapidamente questionados: "O que está acontecendo com você? Você não pode desanimar! Você tem que lutar! Tenha fé!" Não parece ser permitido olhar para o sentido de tudo o que está acontecendo e buscar a nossa essência de vida.


Sobre o limite da empatia e a importância do auto-cuidado

Esses trechos em contexto são bastante específicos sobre trabalhar com Cuidados Paliativos ("o primeiro passo para quem deseja se envolver com CP é conhecer-se"), mas eu achei interessantes pensando sobre empatia no geral também.

Posso cuidar do sofrimento do outro, pois estou cuidando do meu.
Se você tem capacidade de se colocar no lugar do outro, porém desconhece sua autonomia, corre o risco de entrar no lugar dele e nunca mais voltar para o seu.
Se eu for sentir a dor do outro, então não posso estar presente, pois será a minha dor. Se eu sinto a dor, estou em mim e não no outro. Quando tenho compaixão pela dor do outro, respeito essa dor, mas sei que ela não me pertence. Posso estar presente a ponto de proporcionar socorro, levar conforto. Se estou em estado de compaixão, posso oferecer ou buscar ajuda. Se estou sentindo a dor, estou paralisada; não posso suportar estar presente diante desse sofrimento e preciso de ajuda.
O desafio de quem quer estar ao lado de uma pessoa que está morrendo é saber transformar o sofrimento dela em algo de valor. Transformar o sentimento de fracasso diante da doença em um sentimento de orgulho pela coragem de enfrentar o sofrimento de finitude. Se a pessoa que está morrendo se sente valiosa, no sentido de ser importante, de fazer diferença na própria vida e sentir que está fazendo diferença na vida de quem está cuidando dela, ela honrará esse tempo.
Para estar ao lado de alguém que está morrendo, precisamos saber como ajudar a pessoa a viver até o dia em que a morte dela chegará. Apesar de muitos escolherem viver de um jeito morto, todos têm o direito de morrer vivos.
Fazer o seu melhor é prestar atenção ao quão bem estamos, para assim fazer o melhor.


Sobre ainda haver muito a fazer

Os médicos profetizam: "Não há nada mais a fazer." Mas eu descobri que isso não é verdade. Pode não haver tratamentos disponíveis para a doença, mas há muito mais a fazer pela pessoa que tem a doença.
Todo médico deveria ser preparado para nunca abandonar seu paciente, mas na faculdade aprendemos apenas a não abandonar a doença dele. Quando não há mais tratamentos para a doença, é como se não tivéssemos mais condições de estar ao lado do paciente. A doença incurável nos traz uma sensação ruim demais de impotência, de incapacidade.
Cuidados paliativos é tratar e escutar o paciente e a família, é dizer "sim, sempre há algo que pode ser feito", da forma mais sublime e amorosa que pode existir. É um avanço da medicina.
(...) peço que perdoe essas pobres criaturas chamadas médicos, porque não aprendemos a conversar sobre a morte na faculdade. Aliás, não aprendemos nem a conversar sobre a vida! Nossa formação é sobre doença. (...) atuamos na base do medo: faça exames! Ande cinco vezes por semana, durma, coma direito! Senão você morre! Claro que você vai morrer. Mesmo que faça tudo isso. Deveríamos alertar que, se você fizer tudo isso, vai viver melhor. E isso já deveria ser um bom motivo.
É um grande desafio para os médicos e profissionais de saúde compreender que não há fracasso quando acontece a morte. O fracasso do médico acontece se a pessoa não vive feliz quando se trata com ele. (...) O papel mais importante do médico em relação ao seu paciente doente é o de não abandonar.


Sobre negar a realidade da morte

O que mata é a doença, e não a verdade sobre a doença. Claro que haverá um momento de tristeza ao saber-se doente, gravemente doente. Mas essa tristeza é a única ponte até a vida que pode ser vivida verdadeiramente, sem ilusões ou falsas promessas de cura. O que mata a esperança não é saber-se mortal, mas sim perceber-se abandonado.
Na minha rotina, os pacientes conversam comigo sobre sua finitude de maneira aberta e clara. Falamos sobre pontos muito tensos da trajetória das doenças, falamos até dos desejos sobre o funeral. Mas quando esses mesmos pacientes falam com suas famílias, especialmente com a parte da família menos preparada para sua morte, então eles fantasiam tudo. (...) Parecem negar a realidade da doença, mas na verdade, negam a possibilidade de conversar sobre isso, pois duvidam que seus familiares serão capazes de tolerar o assunto.


Sobre olhar pra trás e se arrepender

Olhar pra trás diante da finitude é o que traz mais inquietação. Diante da consciência da morte, olhamos para a vida que tivemos até aquele momento e repensamos nossas escolhas.
(...) usar nosso tempo de vida para nos tornarmos importantes na vida de outra pessoa é escolher um caminho bem torto para existir. Se podemos ser nós mesmos e isso fizer de nós seres amados apenas pelo que somos, isso é felicidade, é completude.

↳ Me lembrou desse tweet sobre um vídeo de um casal que é doidinho igual e se ama desse jeito: " Be nothing else than exactly what you are, or you rob yourself of the chance to be loved for everything you could want to be"

Muitas pessoas pensam que alguém que tem câncer ou passou dos 60 anos virou de repente um santo, digno de ser idolatrado e amado pela família inteira. Não é assim que funciona a vida. Cultivamos a qualidade das nossas relações, e esse cultivo determinará se vamos desfrutar de boas companhias no fim da vida — ou se ficaremos sozinhos. Qual é a verdadeira história de cada abandono?
(...) no momento em que alguém no leito de morte percebe que tomou decisões para fazer felizes outras pessoas, pessoas que nada tinham pedido e que, pior, não se satisfizeram com as decisões que ofereceu a elas, o arrependimento vem e dói demais. Uma dor que nenhuma morfina pode aplacar.
Muitas vezes, escolhemos um caminho que não sabíamos que seria ruim. Agora sabemos e nos arrependemos. É como jogar na Mega-Sena e dizer: "Eu joguei no 44 e deu 45. O que me passou pela cabeça para não ter jogado o 45?!" A verdade simples é que não jogamos no 45 porque achamos que ia dar o 44! Não é justo nos condenarmos por ações passadas baseando-nos no conhecimento que temos agora.
Tudo o que desejamos que seja para sempre corre o risco de não nos fazer feliz hoje só porque acreditamos que nos fará felizes no futuro. Estamos sempre construindo, sempre em reformas, pensando no futuro. Quando a empresa for nossa, tudo será diferente. Namoramos uma pessoa que não nos faz bem agora, mas quando casarmos será diferente. Quando tivermos um filho será diferente. Vivemos pensando que o diferente não vai acontecer agora, e aí, quando acontece a morte, morrem o presente e o futuro.

A dissolução do fogo

Sobre uma visão budista (?) da morte como a dissolução dos elementos que compõe o corpo: terra, água, fogo e ar. A da terra se refere à doença física; a da água se refere à desidratação do corpo, que resulta em introspecção; e a do ar, à devolução do sopro vital.

(Tentei pesquisar um pouco mais sobre e só encontrei links me levando de volta pra esse mesmo livro, que define a filosofia bem vagamente como sendo "dos orientais", então não sei muito mais sobre.)

Na dissolução do fogo, cada uma das células tomará consciência de que o tempo está acabando, mas ainda há tempo de vida.
Quando cada uma das células se dá conta de que seu tempo aqui está se encerrando, elas se esforçam por mostrar, pela última vez, seu melhor estado de funcionamento. (...) É a famosa visita da saúde, a melhora antes da morte, a bela força da última chama da vela. A dissolução do fogo traz para aquele ser humano que morre a oportunidade de perceber a que veio a este mundo para "ser" humano. E essa pessoa tem a chance de mostrar ao mundo o motivo que a trouxe até aqui: amor. (...) Seja ela quem for, terá a chance de mostrar que o mundo é bom e melhor simplesmente porque ela existe/existiu.
Esse processo de melhora complexa, de experimentar a amorosidade em plenitude, expressando a pessoa que se é em sua ausência, mostrando a que veio nessa vida, é o tempo mais consciente do processo ativo de morte.


Sobre aceitar as pequenas perdas

Entregar-se a essa dor é o melhor jeito de deixá-la ir embora. Terminou uma relação? Viva o luto da relação. Foi demitido de um emprego? Viva o luto dessa perda. Viva, experimente essa dor, não fuja, não minimize covardemente aquilo que foi vivido antes. (...) Quando entramos em uma história nova, a melhor forma de vivê-la é pensar que vai acabar. É preciso vivê-la intensamente para que, na Hora H, possamos dizer: "Valeu muito a pena! Deixei um legado, transformei... Não serei esquecido, entrei para ganhar, entrei nesse emprego para dar o meu melhor, entrei nessa relação para dar o meu melhor."

↳ De primeira eu achei esse trecho sublinhado super drástico, talvez até uma maneira muito negativa de ver as coisas, mas nesse contexto, fez todo o sentido pra mim. Eu penso muito nisso, especialmente no tópico de relacionamentos, no tanto de gente que acha que um relacionamento que terminou necessariamente foi um "fracasso" e "não deu certo", como se tivesse sido uma perda de tempo só porque vocês não casaram e viveram juntos até a morte.

O que tem que vir conosco das histórias passadas é a transformação que elas nos proporcionaram. Não levemos a história, e sim o produto da história... E a história só terá um produto se tiver mesmo havido um encontro, se realmente mergulharmos nela por inteiro.


E aceitar a morte

Passar por uma perda pode nos dar a percepção do tamanho do amor que fomos capazes de sentir por alguém, de como essa pessoa pode ter sido generosa ao esperar o nosso tempo de aceitar a morte dela.

Me lembrou de uma fala similar do Andrew Garfield, falando sobre a morte da mãe dele: "So I hope this grief stays with me because it's all the unexpressed love that I didn't get to tell her".

E de um poema lindíssimo da Heidi Priebe, chamado As Long as There is Love, There Will Be Grief ("...because grief is love's natural continuation").

Já o "porquê" [das perdas que vivemos] nunca terá uma resposta satisfatória, ainda que dediquemos a vida toda a tentar responder. Qualquer resposta que se dê a essa pergunta é sempre pequena demais diante da grandeza da experiência do luto.
(...) a pessoa que morre não leva consigo a história da vida que compartilhou com aqueles que conviveram com ela, e para quem se tornou importante ao longo de sua vida. Não existe a possibilidade de haver uma morte absoluta, de desintegração de todas as dimensões de um ser humano cuja existência teve algum sentido na vida de outros seres humanos. Quando a morte acontece, ela só diz respeito ao corpo físico. Meu pai morreu, mas continua sendo meu pai. Tudo o que me ensinou, tudo o que me disse, tudo o que vivemos juntos continua vivo em mim. As duas únicas verdades com que preciso aprender a lidar a partir da morte dele são estas: primeiro, que ele se tornou invisível; segundo, que não teremos um futuro compartilhado na nossa relação. Haverá momentos em que pensarei nele, sentirei muita saudade e refletirei sobre os conselhos que me daria diante de dilemas que ainda virão. Mas, a depender de como eu decidir viver meu luto por sua morte, saberei encontrá-lo dentro de mim nessas experiências que ainda me aguardam.
Se aquela pessoa trouxe amor, alegria, paz, crescimento, força e sentido de vida, então não é justo que tudo isso seja enterrado junto com um corpo doente.
Tudo o que aprendemos com aquela pessoa que morreu permanece dentro de nós. No tempo de luto, se nos dedicarmos à cura da dor pela perda, conseguiremos avaliar com clareza tudo o que foi vivido e tudo o que aquela relação trouxe de positivo à nossa vida.
Tristeza não é depressão. Nesse tempo de extremos, quando a vida nos empurra ao encontro da normalidade, do cotidiano, podem acontecer momentos de alegria e satisfação. Uma conquista de outro familiar ou de outra pessoa amada, e o enlutado volta a sorrir. O problema da nossa sociedade esquizoide é que alegria demais no tempo de luto também não é algo que "pega bem", e é comum que as pessoas enlutadas se sintam culpadas por terem motivos e vontade de sorrir no meio de um processo de luto.
Faz muito bem lembrar dos momentos engraçados que vivemos com a pessoa que morreu. Quando recebo alguém enlutado, peço que enumere tudo de bom que a pessoa falecida ensinou a ela. Depois sugiro que me conte alguns momentos muito engraçados que viveram juntos. (...) quando provoco lembranças da vida em comum, lembranças boas, intensas, transformadoras, trago de volta a essência daquela relação. É nessa conversa que posso mostrar ao enlutado como a vida deixada por aquela pessoa que morreu é plena de significado; afinal, o aprendizado e a história em comum não morrem nunca. O enlutado jamais será privado das lembranças e dos sentimentos. O Amor não morre com o corpo físico. O Amor sempre permanece. (...) Tudo pode morrer, exceto o Amor. Só o Amor merece a imortalidade dentro de nós.


A caverna do luto

Cavar a saída da caverna do luto demanda ação, força, esforço. E as pessoas enlutadas sentem um cansaço intenso, existencial e físico. Não é possível convocar alguém para entrar conosco nessa caverna e cavar a saída para nós.
(...) o luto é um processo de profunda transformação. Há pessoas que podem transformar a nossa temporada na caverna em um período menos doloroso, mas não podem fazer o trabalho por nós.
A revolta, o medo, a culpa e outros sentimentos que contaminam o tempo de tristeza acabam prorrogando nossa estadia na caverna e podem nos conduzir a espaços muito sombrios dentro de nós.


E viver a tristeza

No momento extremo da dor, vem a tristeza, o choro, o desespero, a raiva. Todos esses sentimentos devem ser aceitos e experimentados. Quando me perguntam se podem chorar, eu digo: "Chore, mas chore muito mesmo. Deixe o corpo inteiro chorar, estremeça. Grite, deite na cama e esperneie. Permita-se, abra-se a esse encontro pleno com a dor. Aceite essa condição." E é mágico como a dor passa quando aceitamos sua presença. Olhemos para a dor de frente, ela tem nome e sobrenome. Quando reconhecemos esse sofrimento, ele quase sempre se encolhe. Quando negamos, ele se apodera da nossa vida inteira. Não existe nada de errado em ficar triste, pois a tristeza é uma experiênica necessária para todo processo de luto saudável.
Se as pessoas à nossa volta nos cobram demais a superação, entendamos que elas sofrem por nos ver sofrer. Como não sabem estar ao nosso lado durante essa fase, e como não sabem como reagiriam se estivessem no nosso lugar, lutam com todos os argumentos para tirar a nossa dor da frente.


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