fazer mesmo eu não fiz nada


Hoje eu acordei às 8h da manhã, e depois de tomar café, fui executar uma série de atividades que não chegam nem perto de qualquer definição de “estudar”, que no momento pra mim significa trabalhar na minha tese de mestrado. Eu mexi no JavaScript desse site por horas, gastando preciosos XP cerebrais que poderia ter racionado pra programar coisas mais relevantes antes (tese de mestrado). Eu assisti resenhas de The Last of Us da Isabela Boscov no YouTube enquanto tirava meu esmalte preto, limpava a cutícula e pintava as unhas de novo, agora de azul acinzentado (“sneakers & denim”). Eu limpei meu quarto, reguei minhas flores, botei mais água nas raízes de cebolinha. Esquentei minha lasanha pra almoçar, e almocei na mesa do quarto, ainda vendo a Boscov.

Quando eu estava sentadinha digerindo meu almoço e prestes a lembrar que era Hora de Estudar, conforme o combinado que estabeleci comigo mesma há meros 2 ou 3 dias úteis, uma amiga mandou mensagem me chamando pra tomar um café. Ou melhor: ela me chamou pra ir trabalhar junto com ela numa cafeteria. O problema: meu computador está fisicamente em frangalhos e eu não posso fazer movimentos bruscos levando ele pra passear e arriscar algum algum acidente fatal que me custaria centenas de euros e preciosas semanas de trabalho na minha tese de mestrado, que de atrasada já tá o suficiente. Não que teríamos trabalhado muito de qualquer maneira, foi o que eu constatei quando já estava na cafeteria, trocando cartinhas com a minha amiga sobre os recentes términos das nossas respectivas situationships lésbicas. Tinha pensado até em talvez resolver umas coisas pelo celular mesmo, coisa que eu detesto enquanto late millennial, mas não houve pausa na conversa pra sequer responder mensagem.

Escrevendo isso agora, quase meia-noite, penso que talvez essa conversa tenha sido a única atividade que eu me propus a fazer hoje e de fato me dediquei e completei com sucesso. Tomei um capuccino delicioso e comi um brigadeiro de churros, inexplicavelmente gostoso considerando que a cafeteria é portuguesa. (Uma funcionária mexicana me contou que em Portugal também tem brigadeiro como no Brasil. Não sei se sou eu que tô maluca ou se ela só não sabe que, no caso, isso só pode ser graças aos expats brasileiros.) Esgotadas as atualizações sobre términos, o papo viajou até melhora pessoal e uma variação de astrologia que já esqueci o nome — eu, cética, encarando confusa o PDF mal formatado que minha amiga me mostrava com diversos gráficos incompreensíveis e um parágrafo em destaque dizendo que ela vai continuar flutuando pelo mundo como alguma espécie de nômade dgital até os exatos 28 anos. Voltando ao planeta Terra, falamos de viagem, de lugares pra morar, de estudar línguas, folheamos livros em alemão e em português testando o quanto a outra entenderia. Chegou uma amiga italiana. Batemos papo com a funcionária mexicana, que pela primeira vez falou comigo em espanhol, mas teve que voltar pro inglês quando a italiana se confundiu e tentou pedir um milk latte. Dividimos um bolo de rolo de canela (não [[bolo de rolo] de canela] e sim [bolo de [rolo de canela]], inspiração quase imperceptível no gosto sem graça do negócio). Falamos da Suíça, porque a italiana na verdade é suíça, mas não se identifica com esse país porque o pai é italiano e a mãe é iraniana e tudo na Suíça é muito caro e frio. Perguntei a ela como eles foram parar lá e ela nos narrou o romance, percebendo ser a primeira vez que contava essa história a alguém em Malta. A mãe iraniana escolheu ir com o irmão dela estudar na Suíça ao invés de ficar no Irã e se casar, e o pai italiano tinha ido estudar lá também, porque as universidades suíças eram são mais renomadas. Se conheceram, se apaixonaram e namoraram muito, mas o italiano, tradicional e um tanto conservador, não queria fazer sexo antes do casamento; a iraniana, que tinha ido pra Suíça em busca justamente de uma vida mais livre, queria. Então terminaram. Ele partiu pra viver uns anos como voluntário de alguma coisa pela América do Sul, e a iraniana ficou e se apaixonou por um suíço gay, vivendo todos os estágios dum coração partido até conseguir ser só amiga dele. Mas eventualmente o italiano voltou, e quando voltou, foi atrás dela de novo. (“He texted her,” a italiana disse nessa hora, e nós interrompemos pra ressaltar que não existia celular ainda. Ele provavelmente foi e bateu na porta dela, isso sim.) E funcionou. Eles reataram e enfim resolveram casar. “E transaram antes ou não?!”, perguntamos. Não transaram. A iraniana, resignada, aceitou esperar.

Voltei pra casa quase 17h, que pra mim já é quase o fim da “tarde”, apesar de que aqui o sol se põe 19:30 agora então na verdade não é. Ainda pretendia estudar. Mas antes, fui ajustar meu CV pra me inscrever num evento que eu gostaria muito de ir (em Milão com tudo pago). Troquei uma palavra aqui e outra ali, mudei uns troços de ordem. Comecei a rascunhar a carta de motivação mas não escrevi nem 1 linha inteira. E aí, do nada, o instituto de pesquisa onde eu sonho trabalhar em Barcelona anunciou uma posição em que eu me encaixo perfeitamente. Empolguei tanto que cheguei a me causar uma dor de barriga e tive que parar e deitar na cama com um chá de menta e respirar fundo. Melhorando um pouco, lá fui eu começar a editar outra versão do meu CV e rascunhar outra carta de motivação. Mudei mais umas coisas de lugar, anotei contatos de referência, criei um documento em branco pra carta. Documento que, no caso, continua em branco. No fim das contas, a real é: fazer mesmo eu não fiz nada. E ainda pausei esse nada pra ter uma conversa desnecessariamente profunda com a minha ex(-ficante). Chorei um pouquinho, porque a gente terminou não faz nem uma semana e ela foi revelar umas fotos dela de Malta e selecionou várias fotos minhas e comigo. Agora minha carinha apaixonada tá em fotos no quarto dela na Áustria que eu nunca vou visitar. Mas seguimos amigas. Ficamos brincando por vídeo de Snapchat pra ver quem conseguia ficar mais tempo sem piscar. (Ela venceu, dona de lindos olhos hidratadíssimos.)

Quando ela foi dormir, levantei pra fazer algo pra jantar. Jantei às 23:30 em frente ao computador ainda tentando fazer alguma coisa que eu nem sabia mais o que. Barata tonta. Fiz um chá de camomila. Fui escovar os dentes e fazer meu skincare. E aí eu percebi, horrorizada a ponto de soltar algum xingamento baixinho sozinha em meu próprio banheiro, que ainda não tinha tomado banho o dia inteiro. Não existe sinal mais claro que eu tive um dia especialmente descaralhado do que essa descoberta tarde da noite, porque apesar do quanto o dia descrito aqui se aproxima de um dia regular com o meu cérebro, eu nunca esqueço de comer e eu nunca esqueço de tomar banho. Era hora de parar e sentar pra refletir. De banho tomado e com chá de camomila já médio frio ao meu lado, fui escrever no meu diário. Precisava tirar tudo isso do sistema e botar no papel logo porque já sabia que o dia seguinte tinha potencial pra se enrolar ladeira abaixo também. Refletindo, concluí que, ao invés de prometer estudar sempre à tarde, é melhor eu começar logo de manhã pra garantir algumas horinhas caso apareçam planos, e aí depois, já me sentindo menos culpada, posso fazer as coisas menos importantes. Ao mesmo tempo, comecei a escrever esse texto e me empolguei. E aí sem querer bati o olho na tela do meu laptop, eternamente aberto em tentativa de mantê-lo funcionando, e descobri que a parte quebrada de repente estava mais quebrada de uma maneira específica que anulou qualquer possibilidade de acesso à internet e o tornou inutilizável por si só, e paniquei toda porque esse laptop maldito é novinho e a garantia dele é no Brasil e eu não tenho como consertar rápido nem tenho outro e não é exatamente viável trabalhar numa tese de mestrado em inteligência artificial sem meu próprio laptop com internet.

Não terminei de escrever no diário. Também não terminei de escrever o texto. E, é claro, não resolvi em nada o problema do laptop, porque já eram quase 2 da manhã. Fiz outro chá de camomila.

Agora são 12h, dia seguinte, e já em horário comercial, resolvi em parte o meu segundo problema técnico graças a um milagroso adaptador USB de Wi-Fi, inovação tecnológica até então desconhecida por mim. Então voltei a escrever. Leia-se: por imprevistos fora do meu controle, mas também por minha própria falta de auto-controle, já não segui o plano de estudar de manhã. E nem estudarei à tarde também, porque tá solzão e eu tô indo pra praia daqui a pouco com umas amigas. Mas assim que eu voltar, aí sim, com certeza.