lá não é igualzinho a malta?


“Ô carioca da gema, você conhece Búzios né?”

Primeiro, uma ressalva importante: eu sou niteroiense, não carioca e muito menos da gema, mas pros propósitos dessa conversa, a generalização não tava errada.

“Claro que eu conheço Búzios!”

Fiquei até animada com a pergunta; enfim alguém tocou uma bola pra mim. Estava com esse grupo de lésbicas brasileiras que eu ainda tô conhecendo direito, e às vezes é necessário um esforço social extra pra me enturmar porque elas são todas pelo menos uns 10 anos mais velhas que eu, e quase todas do Sul ou de São Paulo, ou seja, somos espécies fundamentalmente diferentes.

Mas ontem eu conheci essa que também é do Rio, e portanto, também é familiar com o município de Búzios.

E aí ela me perguntou:

“Lá não é igualzinho a Malta?”

*

Tenho uma amiga britânica que diz que na Europa existem dois tipos de famílias: as que passam o verão no sul da Espanha, e as que passam o verão no sul da França. Não vou nem tocar na insanidade dessa classificação aqui.

No estado do Rio de Janeiro somos três tipos, fazendo a mesma peregrinação todo santo feriado, das cidades grandes em direção às melhores praias, e tornando pequena demais uma região de quase 650 mil quilômetros quadrados: Arraial do Cabo, Cabo Frio e Búzios.

Um resumo muito rápido e baseado em nada além das minhas escassas impressões de um curtíssimo tempo de vida que eu dediquei a pensar nesse assunto: a região toda é pobre, mas Cabo Frio é a mais pobre, Arraial do Cabo é menos pobre mas mais fudida porque tem menos espaço e precisa comportar todo o público desse meio termo, e Búzios é cara num nível que hoje em dia só deve ter gringo e herdeiro porque não me surpreenderia um Chicabon custar 40 reais lá.

A minha família, originalmente, é time Cabo Frio de carteirinha, mas não sei se tem alguma razão especial por trás disso ou só o simples fato de ser a mais próxima de Araruama. Originalmente mesmo, a minha família é time Lagoa de Araruama, porque todo niteroiense tem família em Araruama. Antes de a lagoa começar a ficar suja demais, a gente ia pra lá ao invés da praia quando meus pais não queriam se preocupar de uma onda me levar de comes e bebes. Mas uma vez que esse risco foi diminuindo, Araruama ficou só pro natal em família, e o cenário principal dos nossos feriadões e férias passou a ser Cabo Frio. Numa época de vacas gordas (quando a Dilma tava na presidência e eu na federal) tivemos uma fase de ir mais a Búzios, e hoje em dia eu particularmente gosto mais de Arraial, então as lembranças de Cabo Frio ficaram um pouco esquecidas. Mas essa semana eu lembrei.

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Essa memória é tão gigante pra mim que parece ter marcado uma década da minha vida, mas provavelmente foram só uns 3 ou 4 anos consecutivos: a minha família se juntava por 2 semanas em algum momento do verão, e alugava um casarão em Cabo Frio. Meu conceito de “casarão” na época (e hoje também): 2 andares e uns 3 ou 4 quartos. A última iteração dessa tradição foi inclusive só um apartamento, e depois disso acabamos indo em grupos menores e ficando em pousadas e apart hotéis. Mas o protótipo na minha memória é um verão daqueles com todo mundo, na minha favorita das casas que ficamos, uma casa que eu reconstruí inúmeras vezes no The Sims enquanto me perguntava se queria ser arquiteta; essa tinha mesmo dois andares e um design mais moderninho, cheio de curvas, e era toda azul e preta, com uma lindíssima piscina também de bordas arredondadas e ladrilhos azuis. Todas as paredes externas tinham janelas de vidro, e todos os dias pareciam ter 40 horas de duração, e eu não faço ideia de quanto tempo essa viagem realmente durou. A gente brincava na piscina, brincava na praia, e fazia churrasco, e brincava na praça, e voltava pra piscina depois da praça, e fazia janta, e via novela, e ia dormir pensando em acordar e fazer tudo de novo.

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Meus pais provavelmente tem memórias afetivas bem menos cor-de-rosa dessas viagens do que eu. Por mais que ainda seja o tipo de viagem que eles mais amam, eram eles que tinham que limpar piscina, encher bóia de criança, vigiar criança na praia, fazer compra, fazer churrasco, fazer janta, arrumar casa, etc, etc, e claro, ainda tinham em mente todos os outros problemas com os quais um adulto médio não-herdeiro com duas filhas tem que se preocupar. Euzinha, por outro lado, estava no momento mais perfeito possível da minha infância pra aproveitar essas viagens ao máximo e de quebra guardar tudo com carinho na minha memória. Eu era a criança mais velha. Eu já podia ir na pracinha (= atravessar a rua) sozinha com minha irmã e minha prima (segurando firme as mãos delas). Nossa única responsabilidade era decidir do que brincar. Ninguém tinha smartphones. A puberdade ainda nem pensava em dar as caras. A escola só voltaria daqui a quase dois meses, e quando voltasse, eu ficaria feliz de voltar, porque eu gostava de ir pra escola.

Mas uma coisa era sagrada pros meus pais durante essas férias: dormir até tarde. Ou melhor, pra minha mãe e os parentes dela, que necessitam pelo menos 10h de sono pra considerar que descansaram o suficiente. Meu pai não consegue dormir assim, acostumado desde sempre a acordar às 6 pra ir trabalhar, mas nessa época ele só continuava na cama, semi-acordado, e cochilava de novo, e eventualmente era o segundo a acordar e ir pra sala.

A primeira era eu, sempre.

Eu fui a criança insuportável que acordava 7h da manhã todos os dias, e hoje sou a adulta insuportável que acorda 8h da manhã todos os dias. Se eu sair e beber e dançar a noite inteira e chegar em casa quase 5 da madrugada, acordo 10. E, no geral, eu não só acordo como também levanto. Eu não acordo e fico rolando na cama, eu não durmo de novo, e eu detesto ficar no escuro se eu não estiver tentando dormir. Tenho inclusive vagas memórias de algum período da minha infância em que eu acordava tão cedo que minha mãe estabeleceu que eu só poderia levantar às 7, então às vezes eu acordava um pouco antes e ficava na cama esperando. Então, assim que possível eu levantava e saía do quarto, deixando pra trás minha irmã, que puxou mais os genes maternos e só viria a levantar quando fosse acordada.

Nessas manhãs em Cabo Frio, eu passava pelo menos umas 2 ou 3h sozinha pela casa antes de o pessoal começar a acordar. E, vale repetir, não tínhamos smartphones. E eu sempre fui uma pessoa hiperativa. E as TVs nessas casas sempre tinham só canal aberto. Então eu assistia toda a programação matinal da Globo e/ou do SBT. E eu abria todos os armários e gavetas da casa, e fuxicava tudo que tinha dentro, e repetia no dia seguinte como se fosse aparecer algo de diferente. E eu levava meus livros favoritos e relia eles em loop.

Numa manhã dessas eu fiquei tão entediada que eu tentei ligar o celular da minha dinda sem consultá-la pra jogar o jogo da cobrinha e acabei bloqueando ele. Ela tinha aquele Nokia tijolão na época que a Nokia tava tão famosa pelo Snake que eles passaram a escrever “Snake” na frente do celular ao invés de “Nokia”. Em um desses verões eu fiquei obcecada por esse jogo, e infernizava a vida dela o dia inteiro pra me deixar jogar. E a minha dinda, prima da minha mãe, era a última da casa a acordar, e eu constatei que era um desperdício o tijolão ali parado, carregando na sala enquanto ela dormia, então fui resolver por conta própria. Mas acontece que o celular tinha PIN pra ligar, e eu tentei adivinhar o PIN, e falhei; falhei um total de 20x, e bloqueei o celular dela, que só poderia ser desbloqueado com o PUK, que estava no cartãozinho do chip, que ela tinha deixado, obviamente, no Rio.

Quando a minha irmã enfim acordava, me subia uma onda de adrenalina similar àquela inventada pelo Edward Cullen quando salvou a Bella de ser atropelada por uma vã em Crepúsculo. Eu entrava no quarto já procurando meu biquíni antes sequer de acender a luz. Ajudava a montar a mesa de café da manhã só pra ir mais rápido.

Eu podia já ter ido na piscina sozinha nesse tempo todo de manhã, mas não tinha graça.

Durante uma estação do ano bem breve e específica em Malta, que é o finalzinho da primavera, eu abria a varanda de manhã e sentia uma brisa que me lembrava muito essas viagens. Me lembrava o momento em que eu abria as portas da casa e saía passeando pelo quintal; a brisa ainda fresquinha, antes do sol começar a torrar tudo; e o silêncio, a antecipação por um dia divertido pela frente. Em Malta geralmente era só um silêncio antes da hora do rush matinal começar; mas de bônus, a nostalgia.

*

Não tem quase nada em Malta que me lembra o Brasil. Esse lugar é diferente de tudo que eu conheço, um país que eu nunca tinha ouvido falar e mesmo se tivesse ainda não daria pra imaginar. A língua é semítica, o café da manhã é britânico mas o almoço é coelho e escargot, a TV é em italiano, o volante fica à esquerda, o vento traz areia do Saara, e a arquitetura vai do medieval ao contemporâneo em blocos de calcário.

É engraçado, porque olhando pro resto da Europa, podia se esperar que Malta tivesse muito mais em comum com o Brasil que o resto desse continente, exceto pelo fato imediato de ser uma pequena ilha mediterrânea. Faz muito calor, ao contrário de muito lugar aqui; mas é diferente. O povo é simpático e prestativo, ao contrário de muita gente aqui; mas é diferente. E, naturalmente, tem muita praia; mas é tão diferente.

Não lembro mais o que eu ia falar sobre Malta parecer Búzios.